Ao trabalhar em vários locais da Bacia do Rio São Francisco logo percebemos uma grande riqueza ambiental e cultural, e também muitos anseios da população local. Confira esta rica diversidade e as peculiaridades que caracterizam as diferentes regiões abrangidas pelo projeto.
Regiões trabalhadas ao longo da Bacia do Rio São Francisco em Minas Gerais
São Roque de Minas e Vargem Bonita
Os municípios de São Roque de Minas e Vargem Bonita, na região do alto Rio São Francisco, mantém uma estreita relação com a Serra da Canastra e o Parque Nacional. Em São Roque de Minas o turismo é hoje uma das principais atividades econômicas. O município é a principal porta de entrada para o parque e pode-se notar uma maior infra-estrutura ao turista do que em Vargem Bonita que, apesar de não abrangê-lo, também possui muitas pousadas e se chega à parte baixa da cachoeira Casca D’anta, que é a maior atração da região. Apesar de hoje o parque trazer renda para ambos municípios, a sua criação gerou, e até hoje gera, muita controvérsia entre os moradores locais.
O Parque Nacional da Serra da Canastra foi criado durante a ditadura militar de uma forma muito autoritária. Segundo os moradores mais antigos, a população local desapropriada foi expulsa a toque de baionetas de suas casas. A proposta inicial do parque previa que ele teria uma área de 200.000 ha de terras, no entanto apenas uma parcela disso, cerca de 70.000 ha, foram desapropriadas, gerando um problema fundiário que se arrasta até hoje. Hoje uma nova proposta para expansão do parque deixa os proprietários de terra da região com uma certa apreensão. Esta proposta prevê a expansão associada à criação de um Monumento Natural na serra adjacente, a Serra da Babilônia, ao mesmo tempo em que diminui a área inicial do parque. A questão é que a expansão do parque, ou a criação de um Monumento Natural, que é uma área de proteção integral que não permite intervenções no meio ambiente e nem prevê desapropriações ou indenizações, deixa os moradores da região apreensivos, levando-os a ficar contra a criação de mais áreas protegidas. Ao mesmo tempo em que os moradores da região seriam tolhidos de suas atividades produtivas pela expansão do parque, a área que seria retirada do mesmo é justamente onde grandes empresas de mineração pretendem extrair diamante, sem sofrerem as mesmas restrições do resto da população. Inclusive, a volta da mineração é outro assunto do qual a população demonstra receio.
Antes da proibição, a cerca de quinze anos atrás, o garimpo era liberado no Rio São Francisco ao pé da Serra da Canastra. Era praticado livremente nos barrancos do rio, o que devastava o ecossistema ao longo do mesmo. O garimpo era uma grande fonte de renda na região, mas apesar da resistência inicial em relação a sua proibição, atualmente, ao verem os benefícios da revitalização do rio e da paisagem ao redor, a maior parte da população é contra a volta do mesmo. E a instalação de uma grande mineração de diamante, justamente em frente ao maior cartão postal da Serra da Canastra, a cachoeira Casca d’Anta, assusta a população, que teme a volta dos dias em que o rio era sujo, barrento e com poucos peixes.
Outro conflito que ocorre na região está relacionado justamente aos anos em que houve garimpo. Durante essa época muito sedimento foi movimentado pelas dragas que eram usadas para procurar o diamante. Carregados pelas águas esse sedimento soterrou os poços do rio e assoreou seu leito com toneladas de cascalho. No entanto, em toda a região, a extração de cascalho do rio é proibida. A população questiona essa proibição alegando que o cascalho é necessário para a construção civil, e comprá-lo de outras localidades encarece os empreendimentos. Alegam ainda que extração de cascalho ajudaria a desassorear o rio, contribuindo com a natureza. Com esses impasses o diálogo entre a população e os órgãos ambientais da região se torna difícil, e as soluções para esses problemas também.
Além das sedes municipais, também foram realizadas oficinas de educação ambiental em duas comunidades destas cidades. A comunidade de São José do Barreiro, que fica próxima à cachoeira Casca d’Anta, e a comunidade de Campinópolis, que fica bem próxima do Rio São Francisco. Os moradores da região convivem com o Rio São Francisco no quintal de suas casas ou o atravessam diariamente e relatam sua preocupação em preservá-lo.
Jaboticatubas, Santana do Riacho e Santana do Pirapama
A Bacia do Rio Cipó possui uma enorme relevância para o Rio São Francisco. Apesar de não ser afluente direto do São Francisco (o Rio Cipó deságua no Rio Paraúna que deságua no Rio das Velhas que segue para o São Francisco) esse rio é um grande berçário de peixes do São Francisco. Localizado no pé da Serra do Espinhaço, em uma região muito preservada, o rio apresenta águas límpidas e uma grande abundância e diversidade de peixes. As espécies que sobem esse rio para desovar ajudam a repovoar o São Francisco à jusante. Por este fato, a pesca é proibida em toda a sua extensão. Além disso, existem em seu entorno uma série de unidades de conservação que visam proteger o patrimônio natural da região. Em especial temos o Parque Nacional da Serra do Cipó, que protege as nascentes do Rio Cipó.
Não existe na região uma cultura de pesca bem consolidada, e muito menos existem ali pessoas que vivam exclusivamente do pescado. Não apenas em função da proibição da pesca, que gera multas altas para os infratores, mas também pela diminuição gradativa da quantidade de peixes que, segundo os próprios moradores da região, tem relação com a diminuição do volume de água do rio e com a pesca predatória em décadas passadas. Contam esses mesmos moradores que, há mais de 20 atrás, era possível pescar surubins de 40 a 50 kg no Rio Cipó. Algo que é impensável nos dias de hoje. Mesmo assim o rio ainda abriga uma grande abundância de peixes, inclusive espécies de grande porte, como dourado, piau-verdadeiro e matrinxã, que são encontrados com facilidade. Apesar disso a pesca ainda é escassa e quando ocorre, em geral, é para subsistência. O rio é explorado na região como um grande atrativo turístico, devido a suas belas cachoeiras e corredeiras.
Pela beleza cênica da Serra do Espinhaço, do Parque Nacional da Serra do Cipó e do próprio rio e seus afluentes, o fluxo de turistas é intenso em alguns municípios cortados pelo Rio Cipó. Em especial o município de Santana do Riacho, que é por onde se chega a portaria do Parque Nacional. Boa parte da renda do município vem das atividades turísticas, e a ações de preservação ambiental nessas redondezas está muito ligada a esta atividade. Apesar disso, ainda existem comunidades e vilarejos extremamente isolados nesses municípios. Estas comunidades são extremamente receptíveis as atividades de educação ambiental propostas pelo projeto e, em geral, possuem uma grande demanda por mais programas e atividades desta natureza.
Em Jaboticatubas trabalhamos na comunidade Campo Novo Xiru, meia hora distante do distrito da Serra do Cipó por estrada de terra, onde a população vive de pequenas lavouras e sem o agito turístico do famoso distrito. Em Santana do Riacho conhecemos a comunidade Cana do Reino, próxima à sede do município, onde a maioria dos moradores são parentes, apesar da distância relativamente grande entre as casas. Já em Santana do Pirapama trabalhamos em duas comunidades, Inhames e Fechados, onde é preciso percorrer extensas estradas de terra para chegar nesses vilarejos. As grandes distâncias dificultam tarefas simples como ir a escola ou fazer compras para a casa, mas os moradores encaram isso com naturalidade e tocam suas vidas de forma feliz e tranquila, em geral, cuidando da terra. Apesar do grande potencial turístico destas comunidades, o fluxo de visitantes ainda é muito incipiente, em grande parte por causa do difícil acesso. As comunidades de Fechados e Inhames possuem belas cachoeiras e são regiões de extrema beleza cênica e de grande importância para a preservação ambiental no contexto da Serra do Espinhaço.
Três Marias, Buritizeiro e Pirapora
Na região do alto-médio Rio São Francisco as comunidades ribeirinhas têm uma forte ligação com o “Velho Chico”. Muitas pessoas sustentam suas famílias a partir da pesca, e mostram uma estreita dependência do rio e de seus peixes. A cidade de Três Marias concentra um grande movimento de pescadores, tanto esportivos como profissionais, e também de turistas. Isso se deve, em parte, à presença do reservatório da Usina Hidrelétrica de Três Marias que, apesar de ter causado alguns impactos sobre o ecossistema aquático e a reprodução dos peixes, se tornou um atrativo turístico na região. Interessante notar que os peixes migradores que não conseguem vencer o obstáculo imposto pela usina para chegar a seus locais de desova, acabam se concentrando a jusante da mesma, o que resulta em uma grande abundância de peixes neste local, fato que não se repete em outros pontos do rio São Francisco. Já no reservatório em si, as espécies que reproduzem facilmente em ambiente lêntico, tais como o tucunaré, predador proveniente da bacia amazônica, vem aumentando de sobremaneira a população, o que diminui a abundância de peixes nativos mas atrai pescadores esportivos de várias regiões do país. Inclusive muitos pescadores profissionais trabalham como guias para os esportivos durante a alta temporada, gerando uma renda extra para esses pescadores que, muitas vezes, não conseguem sobreviver apenas da pesca. Em função dos fatos citados acima, nota-se uma circulação maior de capital em torno da pesca nesse município. Isso se reflete em um maior poder aquisitivo dos pescadores nativos que, apesar de ainda ser baixo, é superior ao dos pescadores de outras regiões, haja visto as melhores condições de trabalho, com a utilização de barcos e motores de melhor qualidade.
Já em Pirapora e Buritizeiro a pesca é muito mais escassa e precária que em Três Marias. Inclusive a maioria dos barcos são de madeira e confeccionados pelos próprios pescadores. Apesar de existir uma grande quantidade de pescadores na região, são poucos os que conseguem sobreviver apenas da pesca. A maioria tem que recorrer a “bicos” para complementar a renda familiar. Mesmo vivendo ao lado da famosa corredeira do Rio São Francisco, que é farta em peixe mas a pesca é proibida por ser um local de desova das espécies migradoras, o pescado não traz o retorno necessário para o pescador sustentar sua família. Quase todos os pescadores entrevistados pela equipe do projeto reclamam da diminuição da quantidade de peixes na região, resultado dos vários impactos negativos que o rio vem sofrendo ao longo de décadas. Mesmo assim ainda há vantagem em residir próximo as corredeiras, principalmente por não ter que se deslocar muito pra encontrar os peixes no rio, o que não se repete nas comunidades em Jequitaí e na comunidade de Cachoeira do Manteiga (Buritizeiro). Lá os pescadores têm que se deslocar por horas de barco para chegar aos pontos de pesca e, em muitos casos, tem que acampar na beira do rio por dias ou semanas para conseguir pescar o suficiente e garantir seu sustento.
De uma forma geral, em condições melhores ou piores, a situação dos pescadores profissionais em toda a região é bem difícil. A maior parte deles não tem estudo, ou estudaram pouco, e não tem outras qualificações profissionais além da pesca. Assim, essa atividade ainda é a principal fonte de renda deste setor da população, e é imprescindível para a sobrevivência e o sustento de suas famílias. Dessa forma, a preservação do Rio São Francisco e dos processos naturais que garantem a reprodução e o repovoamento dos peixes é uma preocupação constante dos pescadores profissionais que, apesar do pouco estudo, demonstram um grande e refinado conhecimento da dinâmica natural do rio. Eles compreendem bem a função das lagoas marginas (berçário de peixes) e dos grandes afluentes (rota migratória) do São Francisco, e ressaltam a necessidade da preservação destes ambientes e os impactos resultantes de determinadas atividade humanas, tais como contaminação da água e barragens.
Uma das preocupações mais latentes no momento é em relação à construção de nove barragens no Rio Abaeté, afluente do São Francisco que, segundo os próprios pescadores, permite a migração e reprodução de várias espécies de peixes que não conseguem transpor a barragem de Três Marias. Isto resulta em um repovoamento natural do Rio São Francisco, permitindo que espécies nobres, como dourado e surubim, ainda sejam relativamente abundantes na região. A construção destas barragens geraria, portanto, um grande impacto sobre a população de peixes no Rio São Francisco, acabando com um dos principais locais de reprodução das espécies migradoras, o que seria muito negativo para toda a comunidade pesqueira da região. Desmatamento, contaminação das águas por metais pesados oriundos de atividades minerárias e pesca predatória também são reclamações frequentes entre os pescadores. Todos esses fatores em conjunto estão contribuindo para a diminuição dos peixes do Rio São Francisco e tornando ainda mais difícil a vida de sua população ribeirinha.
São Francisco e Januária
No médio Rio São Francisco no norte de Minas Gerais, onde se localizam os municípios de São Francisco e Januária, existe uma grande população de pescadores profissionais organizados em colônias de pesca. Assim como na região de Pirapora e Buritizeiro a maioria desses pescadores precisam complementar a renda familiar com outra atividade, já que a pesca por si só não garante o sustento da família. Um dos recursos mais usados pelos pescadores dessa região é a plantação de hortaliças durante a vazante do Rio São Francisco. Esta atividade se desenvolve paralelo à pesca e é fundamental para a segurança alimentar e complementação da renda das famílias ribeirinhas. As vazantes são áreas que permanecem submersas nas águas do rio durante as cheias e, na estação seca, emergem em formas de ilhas fluviais, que são compostas pelos sedimentos carregados pelo rio, tornando o solo rico em nutrientes e ótimos para a agricultura. Assim tal atividade só é possível porque, apesar de ocorrer com menor intensidade em função da regulação das cheias pela represa de Três Marias, o regime de cheias e vazantes do rio ainda ocorre ano a ano. Como as cidades de São Francisco e Januária encontram-se mais distantes da represa, a contribuição de vários afluentes importantes do São Francisco faz com que esse ciclo natural ainda ocorra com certa regularidade nessa altura do rio. Este fenômeno já não ocorre com intensidade em certas regiões, como logo a jusante de Três Marias, o que dificulta a prática e produtividade da plantação de vazante.
A alteração do ciclo natural de cheias do Rio São Francisco também prejudica muito a pesca na região, porque o abastecimento das lagoas marginais, que são um grande berçário de peixes do rio, fica comprometido. Durante a reprodução na época das cheias, os ovos fecundados nas cabeceiras dos córregos e rios descem os cursos d’água e são carreados para as lagoas marginais. Nestes locais, os ovos desenvolvem-se em alevinos, que permanecem nas lagoas abrigados, e alimentando-se em um ambiente menos hostil que a calha do rio, até que a cheia do próximo ano permita a volta para o rio. Com a regularização do regime de cheias muitas destas lagoas não são mais inundadas periodicamente, já que o nível da água do rio não sobe o suficiente para isso, o que diminui a capacidade de reposição do estoque populacional dos peixes. Além disso, várias lagoas marginais têm sido drenadas para irrigar grandes plantações na região, ou mesmo barradas por fazendeiros a fim de manter seu suprimento de água ou simplesmente para reter os peixes em sua propriedade. Nesta perda dos berçários naturais dos peixes, os maiores prejudicados são os pescadores profissionais que nada podem fazer para reverter tal situação. Também chama a atenção o pantanal do Rio Pandeiros, um local de extrema relevância para reprodução dos peixes do Rio São Francisco e que hoje encontra-se ameaçado devido ao crescente assoreamento de sua cabeceira. Atualmente, o pantanal do Pandeiros conta com apenas um décimo da área alagada que o caracterizava a 10 anos atrás, segundo estudo realizado pelo Instituto de Ciências Agrárias da UFMG.
No norte de Minas, foram realizadas oficinas de educação ambiental em comunidades distantes das sedes municipais, uma vez que estes locais carecem muito de políticas públicas de qualquer natureza. As populações destas comunidades possuem uma ligação profunda com os ciclos do Rio São Francisco e os peixes são componentes fundamentais para alimentação das famílias. Na cidade de São Francisco, além de trabalhar em sua sede, também foram realizadas oficinas na comunidade de Travessão de Minas, um povoado que fica a 25 km de estrada de terra da sede do município. Neste local, o lixo dos moradores se acumula em uma espécie de lixão na parte mais baixa do vilarejo, a poucos metros de uma lagoa marginal que, segundo relato dos próprios moradores, se enche de peixes na época de reprodução. Além de causar impacto ambiental, esse lixo também prejudica a saúde da população que mora perto. No município de Januária, também realizamos oficinas na comunidade de Jatobá, outro povoado que fica às margens de algumas extensas lagoas marginais. Trata-se de um vilarejo bem pequeno, com poucas casas, que não fica muito longe da estrada de asfalto, mas durante a época da chuva o aceso ao local é bem difícil. Muitos ali são pescadores e dependem do peixes para sobrevivência. Praticamente todos os moradores destas comunidades se preocupam com a sua preservação do rio São Francisco, porque sabem que precisam dele saudável para garantir a renda e/ou alimento de suas famílias.